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domingo, 11 de agosto de 2013




O LEGADO DE DOMINGOS

          O que é ser dominicano? Esta é uma pergunta que nos fazemos quando procuramos a Ordem, não digo para ingressar somente como frades, monjas ou irmãs, mas também como leigos, parte forte que compõe a Ordem desde seus primórdios.
          Após celebrar a festa de nosso apostólico fundador, esta pergunta se faz cada vez mais latente na vida daqueles que decidiram seguir a Cristo nas pegadas de Domingos. Nosso fundador nos deixou um legado importante que devemos assumir de coração aberto se quisermos ser fieis à sua proposta. É bom celebrar a festa de Domingos, voltar os olhos para uma figura tão singular que a Igreja teve a felicidade de ter em seu seio. Uma coluna que ajudou a reerguer e sustentar os então fracos alicerces em que a Igreja se encontrava apoiada naqueles tempos.
          Mas o grande diferencial de Domingos foi a sua capacidade de, muito além de escutar, auscultar os sinais dos tempos. Suas propostas foram arrojadas e inovadoras e não é à toa que a Ordem já se encaminha para o seu jubileu de 800 anos de existência a serem completados em 2016. Este exemplo ele não só nos deixou para que o admirássemos, mas para que o seguíssemos com firmeza na fé e na misericórdia para com os mais necessitados.
          Um dos maiores e mais relevantes legados que temos nas mãos é justamente este: estar no mundo, ouvir o mundo, perceber o mundo. Só assim poderemos, imitando a Domingos, falar de Deus e com Deus, pois Deus se faz presente no mundo, em cada ser humano, criatura esta em que Ele deposita todo o seu amor e carinho. Comemoramos o dia de nosso pai fundador no último dia 8 de agosto e hoje, dia 11, comemoramos o dia daquele que nos colocou no mundo. A ternura da paternidade se faz presente entre nós de todas as maneiras, a começar por nosso Eterno Pai, que derrama sua ternura por meio de Seu espírito em homens dos quais temos o orgulho de seguir o exemplo. Que Deus nos dê força e fé para continuar levando luz, esperança e conforto a todos aqueles que necessitarem de nós. Desta maneira estaremos seguindo a Cristo nas pegadas de nosso apostólico pai.

fr. Rafael Andrade, OP

quarta-feira, 12 de junho de 2013

João XXIII e os sinais dos tempos




Domingos Zamagna (*)
Os jovens estão se mobilizando aos milhões, em todo o mundo, e em poucas semanas seus representantes se reunirão com o Papa Francisco no Rio de Janeiro. Quantos desses jovens sabem quem foi e o que representou para a Igreja e o mundo a carismática pessoa de João XXIII, papa da juventude do atual pontífice?
Há 50 anos falecia João XXIII, o “Papa Bom”, assim o chamavam os italianos. Não que Pio XI e Pio XII, seus predecessores, fossem maus. Quando se diz que uma flor é bela, não se quer dizer que as outras sejam feias. Mas após os horrores das guerras mundiais (especialmente a segunda, que ofuscou o pontificado de Pio XII) um papa de feições camponesas e pouco apegado ao formalismo da burocracia eclesiástica, um papa que sorria, que não se considerava um soberano e desejava abrir as portas da Igreja para dialogar com todos, batalhador pela justiça e pela paz, só poderia mesmo ser caracterizado pela virtude da bondade.
Nascido em Sotto il Monte, província de Bérgamo (norte da Itália), em 25 de novembro de 1881, recebeu da família Roncalli o nome de Angelo Giuseppe. Com onze anos entrou para o seminário, nunca teve dúvidas de sua vocação para o sacerdócio, nem mesmo durante o ano de interrupção dos estudos para prestar o serviço militar.
Ainda muito jovem se doutorou em Teologia, destacando-se nos estudos históricos, e passou a executar trabalhos pastorais em sua diocese natal, até a irrupção da primeira guerra mundial, durante a qual serviu o exército, na patente de sargento, como enfermeiro.
Em 1925 foi chamado para o serviço diplomático da Santa Sé, um trabalho que lhe consumiu longos 27 anos, conduzindo-o sucessivamente às delegações na Bulgária, Grécia e Turquia. Os contatos com a Igreja Ortodoxa abriram seu coração definitivamente para a causa ecumênica, além de intenso trabalho para amenizar a fome na Grécia durante a segunda guerra mundial, bem como a proteção e salvação de milhares de judeus do extermínio nazifascista. No fim da guerra, em 1944, foi transferido para a Nunciatura em Paris, que naquela época também supervisionava possessões francesas na África.
A partir de 1953 deixa a diplomacia vaticana, pois Pio XII o nomeia Patriarca de Veneza, onde atua como bispo por breves cinco anos, porque, no conclave para escolher o sucessor de Pio XII, em 28 de outubro de 1958, Monsenhor Roncalli é eleito papa. Contava então 76 anos de idade e muitos apostavam que seria um simples “papa de transição”.
Seu pontificado, porém, foi uma sucessão de surpresas. Pela primeira vez, desde 1870, o papa fez uma viagem fora de Roma: de trem, foi à cidade de Assis, terra de São Francisco, orar e inspirar-se junto a um dos maiores reformadores da Igreja.  Recebeu visitas de líderes de várias Igrejas não cristãs e estreitou relações com governantes de muitas nações, contribuindo para diminuir as perigosas tensões da Guerra Fria. Atuou junto ao Presidente Kennedy na famosa crise dos mísseis soviéticos em Cuba (outubro de 1962). Produziu duas memoráveis encíclicas que conquistaram o mundo: “Mater et Magistra” (1961) e “Pacem in Terris” (1963), com as quais renovou a comunicação dos papas não só com religiosos, mas com “todos os homens de boa vontade”. Nessas encíclicas sociais identificou os sinais dos tempos (socialização, descolonização, ascensão das classes trabalhadoras, promoção da mulher) e proclamou que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”.
A maior contribuição de João XXIII foi, sem dúvida, a convocação do 21º Concílio Ecumênico da Igreja, feita na Basílica de São Pedro em 25 de abril de 1959. Foram anos de intensa preparação que agitou os ambientes católicos, com repercussões por todo o mundo. O Concílio do Vaticano-II foi inaugurado por João XXIII em 11 de outubro de 1962. Não era um concílio para definir dogmas, muito menos para promover condenações. Era a reunião dos bispos de todo o mundo, assessorados pelos teólogos e pastoralistas, para estabelecer o “aggiornamento” da Igreja, isto é, o sincero diálogo com o mundo, com ele também aprender, e para ele dirigir corajosamente a palavra do Evangelho de modo acessível e relevante, a começar com uma profunda renovação da própria Igreja, sacudindo dela a poeira acumulada no decurso dos séculos. Este ideal foi efetivamente alcançado. Quem tiver independência de espírito e agudeza de observação histórica há de convir que a Igreja católica se renovou, mudou para melhor após João XXIII.
A grande maioria dos historiadores, sociólogos, diplomatas etc., passados cinquenta anos da sua abertura, afirmam que o concílio foi um dos maiores eventos do século XX, com efeitos benéficos que perduram até hoje.
Mas João XXIII só pode presidir a primeira sessão do Vaticano II, pois faleceu em 3 de junho de 1963, ficando a cargo de seu sucessor, Paulo VI, dar continuidade e cumprimento às demais sessões que perduraram até 1965.


(*) Jornalista e professor de Filosofia em São Paulo.

terça-feira, 9 de abril de 2013



A vida comunitária na Ordem dos Pregadores: uma meditação de At 2, 42-26
Promoção vocacional dominicana
            O antigo Mestre da Ordem dos Pregadores, frei Timothy Radcliffe, um espirituoso frade inglês, gostava de contar sobre seus diálogos com os jovens confrades, nas inúmeras visitas que devia fazer aos dominicanos espalhados pelo mundo. Perguntou algumas vezes: “qual a melhor e mais rica realidade da vida religiosa?” “A vida comunitária”, respondiam; “e a mais desafiadora?” “A vida comunitária”! Justamente, as melhores coisas costumam custar sacrifícios, como já lembrava Santo Tomás de Aquino, quando falava sobre a paciência, em sua Suma de Teologia. Quem sabe a paciência, uma das caraterísticas do amor-caridade (cf. 1 Cor 13, 4), seja o dom mais importante na construção, nunca terminada, da verdadeira vida comum (cf. Col 3, 12)...
            No número 17 do Livro das Constituições e Ordenações dos frades pregadores (a “constituição” da Ordem dominicana), lemos que “no início da Ordem, S. Domingos pedia aos seus irmãos lhe prometessem comunidade e obediência”. A comunidade está na origem do viver dominicano, de modo que não podemos conceber um dominicano sem comunidade. Mesmo quando algum de nossos irmãos precisam, em vista de uma missão, estar algum tempo fora de sua comunidade, podemos dizer que na pregação daquele irmão se faz presente sua comunidade dominicana. Também é preciso ressaltar que a vida de fraternidade em um Convento não resume todas as maneiras de vida comunitária em nossa Ordem, como nos mostram as interessantes experiências em comunidades inter-congregacionais, mistas ou não, ou mesmo comunidades com religiosos e leigos.
            A inspiração básica para conceber-se a vida dominicana como vida comum está no livro dos Atos dos Apóstolos:
Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações.
Apossava-se de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos.
Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um.
Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos” (At 2, 42-46)

Grande é a riqueza que este texto, em sua singeleza, nos apresenta. Histórica e espiritualmente é um testemunho de grande valor para nossa Família dominicana. Por isso, podemos enxergar em seus trechos itens importantes para a vivência da vida comunitária dominicana.
O primeiro item da assiduidade da nascente comunidade cristã é em relação ao “ensinamento dos apóstolos”. O que isso nos significa? O ensinamento dos apóstolos é a própria fé da Igreja: cremos no que recebemos dos apóstolos. A comunidade religiosa se forma sobre este fundamento: a fé. Não nos reunimos em comunidade por simples amizade, como jovens numa república, ou por causa de um projeto humano, mas por causa da fé, na nos encontramos unidos, pela graça do Espírito Santo. Por isso, não há sentido numa comunidade dominicana se não é a fé que a sustenta. E é justamente esta fé que possibilitará à fraternidade e a cada um de seus membros ultrapassarem qualquer barreira, qualquer crise, qualquer esmorecimento.
Aqueles que na comunidade religiosa têm o papel de estar à frente, orientar e cuidar da unidade têm a dura tarefa de sempre chamar a atenção de seus irmãos para este caráter essencial, sobretudo quando as comunidades parecem se esquecer a motivação básica de seu ser. Tal tarefa pode se apresentar bastante espinhosa em tempos de individualismo e de fuga total a qualquer conflito (características tão próprias da pós-modernidade), mas a certeza da fé, sobretudo quando pouco se fala dela no mundo, é a única a poder sustentar uma comunidade religiosa em seu caminho. Verdade e amor não se separam em uma comunidade de fé (cf. 2Jo3).
O texto de atos também nos fala de unanimidade em relação “à comunhão fraterna” e “à partilha do pão”. Não podemos falar de comunidade sem comunhão. E o que vem a significar isso? Uma comunidade onde há irmãos pobres e irmãos ricos, onde se observa claramente que há privilegiados, gente que não conseguem partilhar, não pode ser uma comunidade efetivamente. A comunidade não é um ente teórico. Por isso, o primeiro passo para se engendrar vida fraterna é a partilha dos bens, é a partilha concreta, sinal de uma nova sociedade, onde todos tenham dignidade. Nesta compreensão se insere a pobreza evangélica.
E o texto nos informa ainda outras coisas: os que tinha alguns bens vendiam-nos para que fosse assegurada a dignidade de cada membro da comunidade, segundo suas necessidades... e onde não há acúmulo, há simplicidade de vida, marca dos homens e das mulheres livres.
É na partilha concreta que uma comunidade mostra sua realidade escatológica: quer ser sinal da vida em plenitude prometida por Jesus, mesmo sabendo que neste sentido sempre estará a caminho. Ela busca viver, neste mundo, os valores do Reino, que já está entre nós (Lc 17,21).
No entanto, esta partilha vai além daquela dos bens: na comunidade, busca partilhar-se o respeito, a bondade, a gentileza. Busca-se ver com constância no próximo um irmão, para ser respeitado, para ser alguém com quem nos importemos, não mais um estranho ou um objeto. E aí encontramos um outro desafio: como respeitar a diversidade, realidade inerente à vida em comum? Quando o diferença do irmão é vista como riqueza e não como ameaça é então que estou aprendendo o que é viver em comum. Seguramente é um engano pensarmos que as comunidades para serem felizes devem ser homogêneas, feitas à nossa imagem e semelhança! Escreveu em sua carta de promulgação das Atas do Capítulo Geral de Roma, em 2010, o Mestre da Ordem frei Bruno Cadoré: “Esta diversidade dos frades é a força de nossa Ordem, e sua alegria. Na Ordem, os mundos tanto de referências como os culturais, compreendendo também os eclesiais e os teológicos, são diversos”.
Na comunidade busca-se a unidade no essencial, proporciona-se a liberdade em relação ao não-essencial, buscando-se viver em tudo a caridade. Sem estes valores, não podemos falar de democracia, palavra tão cara à espiritualidade da Ordem dominicana.
A comunidade apostólica também era unânime na “oração”, em seu diálogo em conjunto com Deus. A primeira pregação que faz uma comunidade dominicana, seguramente, é o seu testemunho de oração em comum. É quando as vozes são unidas umas as outras, e todas unidas à voz da Igreja, louvando, pedindo e agradecendo ao Senhor de todos os dons é que temos um sinal de cristãos que buscam fazer de suas vidas um diálogo constante com Deus, como Domingos, que falava “de Deus e com Deus”, nas palavras do Beato Jordão de Saxônia, segundo superior geral da Ordem dos Pregadores.
A oração em comum vive da oração de cada membro da comunidade. Ir para oração comum sem oração pessoal, nas palavras de São João Crisóstomo, é colocar incenso sobre carvão apagado. Mas a oração pessoal se desenvolve, se completa, se torna espelho da fé, que age no amor, quando se abre à oração em comum. Orar juntos também significa dividir os cuidados de uma “casa de pregação”: oramos pelos homens e louvamos a Deus, e isso faz parte de nosso ofício de pregadores.
É este modo de viver evangelicamente que possibilitava os primeiros cristãos, e que possibilita a uma comunidade religiosa, causar “temor” aos que a vislumbravam; só uma comunidade que se arrisca a viver evangelicamente pode ver nascer nela “prodígios e sinais”, porque não se preocupa tanto com o que pode fazer, mas permite que Deus aja por ela! Vive na dinâmica do dom do Espírito Santo, que pode ali produzir abundantemente seus frutos (cf. Gl 5, 16-25).
Noutras palavras, as comunidades evangélicas, podem causar espanto, logicamente, mas também suscitar possíveis seguidores.
O texto de Atos não nos diz que a comunidade era a última responsável pelos novos cristãos: “E o Senhor acrescentava...”. É o próprio Deus que pode chamar os jovens a se engajar numa vida em comum em vista da pregação. Quem sabe seja sempre bom nos lembrarmos, nestes tempos nos quais o marketing define tantas coisas, que a comunidade é pregadora, mas quem aumenta a faz crescer é o próprio Deus (“eu plantei, Apolo regou, mas é Deus quem fez crescer”, disse Paulo em 1Cor 3,6). O pregador pode ou não ajudar a suscitar a fé, não somente por suas palavras, mas sobretudo por sua coerência. Como recordava o Papa Paulo VI, em sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres”. E um mestre só pode ensinar se for testemunha. É o que intuiu Domingos no nascimento de sua Ordem: pregar vai além de fazer discurso: envolve a própria vida; quis não comunidades de pregadores, mas comunidades pregadoras: lugares onde o modo de viver falasse do Evangelho.
A beleza da proposta da vida comum dominicana, baseada no que a Escritura nos conta da comunidade apostólica, é ao mesmo tempo de extrema beleza e assustadora, sobretudo em mundo que não cansa de engendrar “jovens ricos” (Mt 19, 16-22; Mc 10, 17-22; Lc 18, 18-23). Mas é justamente neste desafio apresentado por um Deus que não nos convida à mediocridade (“porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca” – Ap 3,16) que está o fascínio exercido sobre corações generosos, sobre aqueles que não temem fazer de suas vidas resposta a um Chamado. E o próprio Deus que chama nunca deixa de sustenta-los.
Frei André Tavares, OP

terça-feira, 26 de março de 2013


VOCAÇÃO E INTEGRAÇÃO HUMANA
Promoção vocacional dominicana
            
         


          O ser humano, na visão cristã, tem sua origem numa bipolaridade que o caracteriza como um ser continuamente mutativo em meio aos seus determinismos: divino e humano. É divino porque sua essência última é o próprio Deus Amor que se encarnou a nós mesmos no seu Filho Jesus Cristo. Sua divindade se dá pelo complexo fato de que é um mistério que abunda num corpo material e biológico que embora tendo consciência dos seus próprios limites, tem a possibilidade de esperar, desejar e dar saltos de qualidade para além das suas próprias expectativas imediatas. É humano porque está na terra (“húmus”); está condicionado por todas as possíveis variantes da espécie num corpo que possui uma instintividade e materialidade própria. Ora se domina ora se deixa dominar pelas vicissitudes da própria natureza. Sabe que pode ir além de si, mas pode escolher ser conduzido pelo que parece ser evidente.
            Diante desta simples e factual constatação, nos perguntamos: sendo divino e humano, onde se encaixa a vocação? Qual é a sua verdadeira vocação? Como ser feliz mesmo não sabendo onde deseja chegar? Porque seguir a uma voz interior difícil de escutar e discernir quando há outras vozes imediatas e mais sedutoras a se auscultar? Estas e outras interpelações sempre invadem e assolam a intimidade de todos os que buscam um sentido para além do imediatismo, presentificação e eternismo da cultura e da mentalidade atual. Qual o melhor caminho a seguir e optar diante de milhares de possíveis fontes de realização humana? No interior de todo ser humano sempre surgem indagações que nos deixam irrequietos; esta é a nossa origem e chão; não podemos fugir a isso como também a inúmeras outras cobranças das tensões que trazemos. Estas são a possibilidade para amadurecermos e nos encaminharmos numa busca de integração do que somos: divinos e humanos.
Inúmeras teorias e idéias acerca do ser humano dissimuladas pela nossa cultura nos deixam atordoados e confusos. O cristianismo desde suas primeiras reflexões apenas diz que somos divino e humano e humano e divino fundidos num corpo e num espírito. Difícil definirmos e mais difícil ainda projetarmos este para ideais inalcançáveis. Talvez a teologia e a filosofia cristã nos dão pistas. O mais importante que todas as teorias ou hipóteses é o nosso esforço autêntico em integrar estas duas realidades distintas, mas interdependentes dentro de nós. A grande vocação de todo ser humano se dá no lento e artístico processo de integração dos inúmeros feixes de possibilidades que somos. Quando somos sensíveis a este ardoroso movimento de unificação e “centramento” das origens humanas iniciamos a integração humana necessária para se viver bem.
            Além da integração destas fontes também temos que paulatinamente compreendermos nossa vontade, inteligência, liberdade, responsabilidade num plano maior. Queremos ser felizes e não percebemos que a única e verdadeira felicidade é se conduzir por meio deste plano maior da nossa vida: a vocação.
            A vocação é esta maravilhosa arte de ser conduzido por uma voz interior, uma única voz, em meio às sombras e luzes interiores que nos identifica como humanos. Não um ser que apenas vive com luzes ou somente sobrevive em meio às trevas. Somos as duas dimensões ao mesmo tempo. Até que desejaríamos separar o joio do trigo para melhor viver, mas Jesus na parábola, diz que ainda não é o momento da colheita; temos muito que semear, plantar e cultivar. Semeemos, plantemos e cultivemos nossa vida por meio de caminhos bem escolhidos; integremos também nossa divindade na humanidade e a humanidade na divindade. Organizemos por dentro para fora o que unicamente damos conta. Peçamos as luzes do Espírito Santo que com maestria nos auxilia neste envolvente caminho de integração do que somos rumo à descoberta da nossa verdadeira vocação.

Frei André Boccato, OP

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013


Por que e para que um pré-noviciado*



A porta
O que busca, o que quer um jovem que bate às portas de um convento dominicano?
É difícil saber, sendo que este jovem vem de um mundo tão plural, tão confuso e, com frequência, tão resistente a tudo que vá além do imediatismo. Por isso se supõe que quem chega até a porta planejou algo baseado em Jesus Cristo que até hoje arrasta, seduz e convida, mas envolto em uma nuvem que quem sabe necessite de luz para conhecer o que há por detrás dela. Por isso, a chamada deste desconhecido pode se fazer desconcertante para quem abre a porta; esta permite ou impede a entrada em uma casa e, ao abri-la, há que se fazer com um sentimento de acolhida, mas não isenta de precaução. Isso porque não se pode convidar ninguém a fazer parte de uma comunidade sem antes saber suas reais intenções. É como dizer: vamos nos conhecer, e pode ser que este conhecimento nos ajude a discernir que vivemos uma mesma fé e uma mesma maneira de entender a vida ao serviço do Evangelho, ou seja, com as características dominicanas. Ou, quem sabe, se chegue a conclusão de que as intenções de quem bate à porta não são as mesmas de quem a abriu.

O claustro
Os conventos clássicos dominicanos dispunham de um claustro, mais ou menos artístico, por onde passeavam e refletiam os frades. Também serviam para fazer procissões, mas não é o caso. Era ,principalmente, área de meditação e de trânsito. Era o que se oferecia a quem havia atravessado seus umbrais. Reflexão para discernir entre o que se oferece ali dentro e o sentido de transição para uma outra forma de entender a vida e os seus interesses.
Se oferece, assim, um ano de experiência, onde o dominicano vai injetando pequenas doses de realismo. É o que chamamos de pré-noviciado. É “provar” e “comprovar” que a semente vocacional de quem se sente atraído pela Ordem tem pleno sentido no dia a dia, onde há a possibilidade de contrastar ideias e ideais, e ver a capacidade de lidar com as imperfeições dos demais, sem desanimar ante as diferenças, vendo que é possível, apesar de tudo, a formação de uma fraternidade com todos.
Um pré-noviciado é ensaiar um estilo de vida que, com o passar do tempo, poderá assumir compromissos mais definitivos. Portanto, é uma singela prova prática do que significa optar por uma vida dominicana. Não é um jogo, mas uma experiência baseada no estudo, na oração e na vida comunitária. Se vive imerso no que é a vida dominicana para que, com a vivência se possa se possa ir experimentando aos poucos este estilo de vida. Por isso mesmo a vida transcorre em uma comunidade real, com o ritmo dos frades, os quais analisam se o candidato se adapta de forma natural. Por isso o candidato é acompanhado por um grupo de frades, ainda que haja um responsável direto por ele. É um ano, só um ano e todo um ano, onde quem deseja fazer-se dominicano experimenta em que consiste esta vida. Não há disfarces, há realidade. Vai-se vivendo dia a dia a vida dominicana em seus diferentes aspectos. E é no dia a dia, com todos os obstáculos que o acompanham, onde se pode provar as riquezas e limitações dessa vida. Os demais te observam e percebem que seus sonhos têm sentido e te animam, ou, de outro modo, te mostram um outro caminho a ser seguido.

A decisão
Ao concluir o ano, há alguns que decidem seguir com entusiasmo o que provaram. Outros abandonam, por não acharem que este estilo de vida se encaixe com sua realidade. Do mesmo modo, é possível que se comunique ao candidato que, observado pelos outros frades, se chegou a conclusão de que a maneira dominicana de vida não é a melhor para que ele siga sua vocação. Esta decisão é tomada pelas duas partes (candidato e comunidade) e por isso se torna fundamental um constante diálogo, onde o dia a dia vá encontrando eco no interior e no exterior de ambas as partes.
Ao concluir o ano, se a decisão é firme e a vocação dominicana encontrou sentido, novamente há que atravessar a porta para sair e iniciar o noviciado, um ano de compromisso oficial. A experiência está concluída e os passos a serem dados têm uma orientação clara. Tendo o hábito como sinal de maior identidade, os dias se consagram em um ritmo plenamente dominicano. O espírito, a história, a vida dominicana convertem em definitivo uma vida que quer ser evangélica e evangelizadora. O jovem dominicano começa a dar passos de verdade pelo caminho que tantos homens e mulheres decidiram caminhar para se tornar parte do que é a Ordem de São Domingos.


*fr. Salustiano Mateos Gómara,OP, Valladolid, IDI, Janeiro de 2013.
Tradução: fr. Rafael Andrade, OP

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012



FELIZ ANO-NOVO 
Frei Betto

Por que desejar Feliz Ano-Novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para afegãos e palestinos, e os soldados usamericanos sob ordens de um governo imperialista que qualifica de “justas” guerras de ocupações genocidas? 

Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes conscientes dos fracassos de Copenhague, que salvam a lucratividade e comprometem a sustentabilidade?

O que é felicidade? Aristóteles assinalou: é o bem maior a que todos almejamos. E meu confrade Tomás de Aquino alertou: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo que fazem, a própria felicidade. 

A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou “condenados da Terra”.

A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que ela resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é “a grande aventura do desejo”. 

Estimulado pela propaganda, nosso desejo exila-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo – reza a publicidade – nos fará felizes.

Desejar Feliz Ano-Novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes? O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários de seu rebanho, espera que o próximo tenha também um Feliz Ano-Novo? 

Na contramão do consumismo, Jung dava razão a São João da Cruz: o desejo busca sim a felicidade, “a vida em plenitude” manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.

A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento. 

Trata-se de uma aventura espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.

Porém, ao mergulhar nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos ofensivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com quem é generoso; prepotentes com quem nos acolhe em solícita gratuidade. 

Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.

Feliz Ano-Novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. Claro, muitas outras conquistas podem nos dar prazer e alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, desigualdade, degradação ambiental, políticos corruptos! 

Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis por opção ou omissão, constitui um gritante apelo para nos engajarmos na busca de “outros mundos possíveis”. Contudo, ainda não será o Feliz Ano-Novo.

O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo desenvolvimentista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada na economia solidária e sustentável. 

Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade travestida de doces princípios; e o ódio disfarçado de discurso amoroso.

A diferença é que estaremos conscientes de que, para se ter um Feliz Ano-Novo, é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar-se de si mesmo, virar-se pelo avesso e deixar o pessimismo para dias melhores. 

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros. 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012


Frei Gilberto Gorgulho OP (1933 - 2012)

Domingos Zamagna (*)

Faleceu em São Paulo, às 6,20 hs de terça-feira, festa do Proto-mártir Santo Estevão, o exegeta Frei Gilberto da Silva Gorgulho.
Durante seis décadas Frei Gorgulho, da Ordem dos Frades Pregadores, foi um incansável Pregador da Palavra de Deus.
Natural de Cristina-MG, de família muitíssimo cristã, que deu à Igreja também duas religiosas da Congregação da Providência de Gap, desde que se decidiu pela vida sacerdotal, cursou seminários clássicos e deles herdou o que eles tinham de muito bom: espírito de pobreza e serviço evangélicos, disciplina intelectual, fé sólida vivenciada na oração, espiritualidade, cultura, erudição. 
Entrando na Ordem dos Dominicanos, os superiores acolheram seu desejo de especializar-se em Sagradas Escrituras, enviando-o para estudos avançados na França, em Saint-Maximin (Provence) e Toulouse (Haute Garonne). Em seguida passou pela Universidade Santo Tomás de Aquino (Angelicum) de Roma para a obtenção dos graus acadêmicos em Sagrada Escritura na Comissão Bíblica da Santa Sé. Especializou-se em seguida na École Biblique et d’Archéologie Française de Jerusalém (fundada pelo Pe. Marie-Joseph Lagrange OP e até hoje mantida pelos Dominicanos), filiada à École Pratique des Hautes Études, da Sorbonne-Paris. Durante os três anos que viveu no Oriente, residiu no Convento de Santo Estevão, santo que o acolheu, liturgicamente, no dia de seu falecimento.
Retornando ao Brasil, a partir da década de 60, Fr. Gorgulho se dedicou intensamente ao magistério, principalmente na Escola Dominicana de Teologia, na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e no Instituto Teológico Pio XI, em São Paulo, mas sempre dando cursos regulares em Petrópolis (RJ), Viamão (RS) e cursos e palestras em vários estados brasileiros e no exterior. Foi colaborador assíduo da CRB e da CNBB e sempre muito engajado nos trabalhos ecumênicos.
Durante décadas, Fr. Gorgulho orientou centenas de dissertações e teses em estudos bíblicos, formando pelo menos duas gerações de biblistas brasileiros e latino-americanos.
Fr. Gorgulho participou ativamente da preparação e difusão do Concílio do Vaticano II. Recordo-me de vários arcebispos e bispos que passavam horas em seu escritório no Convento de Santo Alberto Magno estudando com ele os documentos preparatórios do Concílio, dentre eles o então arcebispo de Ribeirão Preto, D. Agnelo Rossi, que mais tarde se tornou cardeal-arcebispo de São Paulo e lhe abriu as portas da arquidiocese para um trabalho qualificado de evangelização. A partir de 1971, quando D. Paulo Evaristo Arns OFM substituiu D. Agnelo, entre o novo arcebispo e o frade desenvolveu-se intensa colaboração pastoral, especialmente na evangelização das periferias, para a qual Fr. Gorgulho não mediu esforços, colocando a serviço dos pobres seus conhecidos dons intelectuais, sua ousadia pastoral, seu discernimento teológico e sua liberdade de fiel Pregador da Palavra de Deus. 
Teve colaboradores e bons companheiros, porque sempre soube trabalhar em equipe e fiel às amizades: D. Luciano Mendes de Almeida SJ, D. Cândido Padin OSB, D. Tomás Balduíno OP, D. Valdir Calheiros, Frei Carlos Josaphat OP, Pe. José Comblin (hoje no ostracismo em certas dioceses), Frei Carlos Mesters, O. Carm., Pastor Milton Schwantes, Profa. Ana Flora Anderson, Pe. Ticão, Mons. Lancelotti, Prof. Alfredo Bosi, o jornalista Evaldo Dantas e uma plêiade de leigos e leigas que se beneficiavam de seus ensinamentos.
Durante vários anos Fr. Gorgulho dirigiu os trabalhos de tradução da Bíblia de Jerusalém, editada pela Paulus, editora pela qual lançou uma dúzia de títulos.
Colaborador de várias revistas, teve também uma coluna no jornal “O São Paulo”. Na década de 70 era um prazer ouvir seus comentários na TV Record, rápidos e profundos, num quadro chamado “Esta cidade tem alma”.
Intelectual finíssimo, e todavia sempre um homem de hábitos simples, modos de homem do povo do sul de Minas.
Como infelizmente sói acontecer, toda vez que alguém se dedica de corpo e alma, fielmente, à evangelização, aparecem alguns que o acusam de heterodoxia etc. Às vezes isso até pode ser verdade, mas é difícil conhecer alguém mais evangelicamente ortodoxo do que Fr. Gorgulho! No entanto, isso é um leit-motiv na História da Igreja: aconteceu com Santo Tomás de Aquino, com Pe. Lagrange, Pe. Lyonnet... Essas indignidades fizeram com que Fr. Gorgulho precisasse abandonar a cátedra na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, sem solidariedade dos professores, num momento em que esta instituição rompia com a Teologia da Libertação.
Foi acolhido durante alguns anos no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião, da PUC-SP, orientando dezenas de trabalhos e publicando muitos artigos, até que a idade avançada começou a limitar seus empreendimentos. Poucos sabem, mas a demissão da PUC-SP, numa vala-comum típica do capitalismo que justamente as instituições católicas gostam de criticar, juntamente com centenas de outros professores, causou-lhe profundo desgosto, sobretudo quando soube que o motivo alegado, mas que o burocrata de plantão não teve coragem de lhe dizer, foi que “o seu tempo tinha passado”.
De fato, agora são outros tempos, conduzidos por outros agentes, outras lideranças.
Devemos ser humildes, o tempo passa para todos. Que isto seja dito para contemplarmos a suprema verdade: somente o Reino é eterno! “A erva seca e a flor fenece, somente a Palavra do Senhor permanece eternamente” (Is 40,8).
Esperemos que sejam tempos melhores para a Igreja, isto é, de mais liberdade e ousadia (parressía), mais lucidez, mais justiça, mais solidariedade, mais caridade, mais paz, mais alegria. Foi para isso que Fr. Gorgulho, qual semeador, como varão evangélico, passou a vida, pobremente, sem os aparatos do poder, pregando a Palavra de Deus. 

(*) Jornalista e professor de Filosofia em São Paulo.